terça-feira, 12 de maio de 2009

Cap. 2 - Edward Irving: os «shakers»

A HISTÓRIA de Edward Irving e sua experiência, entre 1830 e 1833, com as manifestações espíritas, são de grande interesse para o estudante de psiquismo e ajuda a vingar o abismo entre Swedenborg, de um lado e Andrew Jackson Davis, do outro.
Os fatos são os seguintes:
Edward Irving pertence àquela mais pobre classe de tra¬balhadores braçais escoceses, que produziu tantos homens de valor. Da mesma origem e da mesma época de Thomas Carlyle1, Irving nasceu em Annan, em 1792. Depois de uma juventude dura e aplicada ao estudo, desenvolveu-se como um homem muito singular. Fisicamente era um gigante e um Hércules em força; seu físico esplêndido só era estragado pela horrível saliência de um olho, defeito que, como o pé aleijado de Byron2, de certo modo parecia apresentar uma analogia nas esquisitices do caráter. Sua inteligência era máscula, ampla e corajosa, mas destorcida pela primeira educação na acanhada escola da Igreja Escocesa, onde os duros e cruéis pontos de vista dos velhos Convencionais — um Protestantismo impossível, que representava a reação contra um Catolicismo impossível — jamais envenenou a alma humana. Sua atitude mental era estranhamente contraditória, pois, se havia herdado essa atrapalhada teologia, deixara de herdar muito daquilo que é o patrimônio do mais pobre escocês. Opunha-se a tudo quanto fosse liberal e até mesmo elementares medidas de justiça, como a Lei de Reforma de 18323, que nele encontrou uma forte oposição.
Esse homem estranho, excêntrico e formidável tinha tido o próprio ambiente no século 17, quando os seus protótipos se reuniam nas charnecas de Galloway e exterminavam ou, possivel¬mente, atacavam a braço os dragões de Claverhouse4. Mas a vida continuou e ele teve que escrever o seu nome de certa maneira nos anais de sua época. Sabemos de sua extrema moci¬dade na Escócia, da rivalidade com seu amigo Carlyle no afeto pela inteligente e viva Jane Welsh5, de seus giros e exibições de força, de sua curta carreira como violento mestre-escola em Kirk¬caldy, de seu casamento com uma filha de um ministro naquela cidade e, finalmente, de sua nomeação para cura, ou assis¬tente do grande Dr. Chalmers6, que era então o mais famoso clé¬rigo da Escócia e cuja administração na paróquia de Glasgow é um dos mais interessantes capítulos da história da Igreja Esco¬cesa. Neste cargo ele adquiriu, no trato dos homens, o conhe¬cimento com as classes mais pobres, o que constitui a melhor e a mais prática preparação para a vida. Sem isto ninguém é realmente completo.
A esse tempo havia uma pequena igreja escocesa em Hatton Garden, fora de Holborn, em Londres, que tinha perdido o seu pastor e se achava em posição crítica, quer espiritual, quer financeiramente. A vacância foi oferecida ao assistente do Doutor Chal¬mers que, depois de alguma reflexão, aceitou-a. Aí a sua elo¬quência sonora e as suas luminosas explicações do Evangelho começaram a atrair a atenção e, subitamente, o estranho gigante escocês ficou na moda. A rua humilde, nas manhãs de domingo, ficava atravancada de carruagens, e alguns dos mais notáveis homens de Londres, bem como senhoras, acotovelavam-se dentro do pequeno templo. É evidente que tamanha popularidade não podia durar e que o costume do pregador de expor o texto durante uma hora e meia era muito para a elegância lon¬drina, embora aceitável ao norte de Tweed. Finalmente foi re¬movido para uma igreja maior em Regent Square, com capa¬cidade para duas mil pessoas e onde havia assentos suficientes para se acomodarem de maneira decente, embora o pregador já não despertasse o interesse dos primeiros dias. De lado a sua oratória, parece que Irving foi um pastor consciencioso e muito trabalhador, que lutava continuamente para satisfazer as necessi¬dades materiais dos mais humildes elementos de seu rebanho, sempre pronto, dia e noite, no cumprimento de seu dever.
Não obstante, logo começaram as lutas com as autoridades de sua Igreja. O assunto em disputa constituiu uma bonita base para uma querela teológica daquele tipo que fez mais mal ao mundo do que a varíola. A questão era se o Cristo tinha em Si a possibilidade de pecar, ou se a Divina Porção do Seu Ser constituía uma barreira absoluta contra as tentações físicas.
Sustentavam uns que a associação de idéias como Cristo e pecado era uma blasfêmia, O teimoso clérigo, entretanto, replicava, com algumas mostras de razão, que a menos que o Cristo tivesse a capacidade de pecar e a ela resistisse vitoriosamente, o seu destino terreno não era o mesmo que o nosso e suas virtudes desperta¬vam menos admiração. O assunto foi discutido fora de Lon¬dres com muita seriedade e por um tempo enorme, tendo como resultado uma declaração unânime do presbitério, condenando o pon¬to de vista do pastor.
Entretanto, tendo a sua congregação, por sua vez, manifestado uma inqualificável aprovação, ele pode des¬prezar a censura de seus irmãos oficiais.
Mas um maior obstáculo se achava à sua frente. O encontro de Irving com ele levou o seu nome a viver como vivem todos os nomes a que se associam reais êxitos espirituais..
Inicialmente há que considerar que Irving estava profundamente interessado nas profecias bíblicas, especialmente nas vagas e terríveis imagens de São João7, e os estranhos vaticínios de Daniel8. Refletiu muito sobre os anos e os dias marcantes do período de ira que devia preceder a Segunda Vinda do Senhor. Por aquela época — pelas alturas de 1830 — havia outros profundamente imersos nas mesmas sombrias especulações. Entre estes contava-se um rico banqueiro, chamado Drumond, dono de grande casa de campo em Albury, perto de Guildford. Nessa casa aqueles estudiosos da Bí¬blia costumavam reunir-se de vez em quando, discutindo e com¬parando seus pontos de vista tão minuciosamente que não era raro que suas sessões se alongassem por uma semana, sendo os dias inteiramente ocupados desde o almoço até o jantar. Este grupo era chamado os profetas de Albury9. Excitados pelos sucessos políticos que haviam levado à Lei da Reforma, todos eles con¬sideraram que as bases mais profundas tinham sido abaladas. É difícil imaginar qual teria sido a sua reação se tivessem chegado a testemunhar a Grande Guerra. Seja como for, esta¬vam convencidos de que estaria próximo o fim de tudo e bus¬cavam impacientes sinais e portentos, torcendo as vagas e sinis¬tras palavras dos profetas de todas as maneiras em fantás¬ticas interpretações.
Por fim, acima do monótono horizonte dos acontecimentos apareceu uma estranha manifestação. Havia uma lenda de que os dons espirituais dos primeiros dias10 reapareceriam antes do fim, e entre eles aparentemente estava o esquecido dom das línguas, voltando como patrimônio da humanidade. Começou em 1830 ao oeste da Escócia, onde os sensitivos Campbell e Mac Donald11 diziam que o sangue céltico sempre tinha sido mais sensível às influências espirituais do que a mais pesada corrente teutônica. Os Profetas de Albury exerciam a maior atividade intelectual e um emissário foi mandado pela Igreja de Mr. Irving para inves¬tigar e relatar o caso. Verificou-se que a coisa era exata. As pessoas tinham boa reputação e uma delas, na verdade uma senhora cujo caráter poderia antes ser descrito como de santa. As estranhas línguas em que ambos falavam, por vezes eram ouvidas e suas manifestações eram acompanhadas por milagres de cura e outros sinais. É claro que não havia fraude ou mistificação, mas um verdadeiro influxo de alguma força estra¬nha que levava a gente de retorno aos tempos apostólicos.
Os fiéis esperavam ansiosos novos acontecimentos.
Estes não se fizeram esperar: irromperam na própria Igreja de Irving. Foi em julho de 1831 que correu o boato de que certos membros da congregação tinham sido tomados de maneira estranha em suas próprias residências e que discretas ma¬nifestações ocorriam na sacristia e outros recintos fechados. O pastor e os seus conselheiros estavam perplexos, sem saber se uma demonstração mais pública iria ser tolerada, O caso resol¬veu-se por si mesmo, por uma espécie de acordo com os Espí¬ritos e, em outubro do mesmo ano, o prosaico serviço da Igreja da Escócia foi subitamente interrompido pelos gritos de um pos¬sesso. Foi tão rápido e com tamanha violência, tanto no serviço matinal, quanto no da noite, que se estabeleceu o pânico na igreja de tal modo que, se não fosse pela trovejante súplica do gigante pastor “Oh! Senhor serena o tumulto do povo!” talvez se tivesse seguido uma tragédia. Também houve muito sussurro e muitos brados dos velhos conservadores. Como quer que seja, a sensação foi considerável e os jornais do dia apareceram cheios de comentários, que estavam longe de ser favoráveis e respei¬tosos.
Os gritos vinham de homens e de mulheres e, no primeiro caso, se reduziam a ruídos ininteligíveis, que tanto eram meros grunhidos quanto linguagem inteiramente desconhecida. “Sons rápidos, queixosos e ininteligíveis”, diz uma testemunha, “Havia uma força e um som cheio”, diz uma outra, “de que pareciam in¬capazes os delicados órgãos femininos”. “Rebentavam com assom¬bro e terrível fragor”, diz uma terceira. Muitos, entretanto, fica¬vam fortemente impressionados com aqueles sons; entre eles, Irving. “Há na voz um poder de impressionar o coração e domi¬nar o Espírito de maneira que jamais senti. Há uma cadên¬cia, uma majestade e uma constante grandeza que jamais ouvi falar de coisa semelhante. É muito parecido com os mais sim¬ples e os mais antigos cantos no serviço da catedral de tal modo que cheguei a pensar que aqueles cantos, cuja reminiscência pode chegar a Ambrósío, são as inspiradas preces da Igreja primi¬tiva”.
Entretanto, em breve, palavras ininteligíveis em inglês foram adicionadas aos estranhos ruídos. Em geral eram jaculatórias e preces, sem óbvios sinais de caráter supranormal, salvo que se manifestavam em momentos inadequados e independentes da vontade de quem as proferia. Nalguns casos, entretanto, essas forças atuavam até que o sensitivo fosse, sob sua influência, capaz de longas arengas, de expor a lei da mais dogmática maneira, sobre pontos de doutrina e fazer censuras que, incidentemente eram carapu¬ças para o sofrido pastor.
Pode ter havido — de fato houve, provavelmente uma ver¬dadeira origem física para tais fenômenos; mas eles se tinham desenvolvido num terreno de estreita e fanática teologia, desti¬nada a levá-los a ruína. O próprio sistema religioso de Swedenborg era demasiadamente acanhado para receber a plenitude desses dons do espírito. De modo que pode imaginar-se a que se redu¬ziram, quando recebidos nos estreitos limites de uma igreja es¬cocesa, onde cada verdade há de ser virada e revirada até ajustar-se a algum êxito fantástico. O bom vinho novo não pode ser guardado em insuficientes odres velhos. Tivesse havido uma reve¬lação mais completa, e certamente outras mensagens teriam sido recebidas de outras maneiras, as quais teriam apresentado o assun¬to em suas justas proporções; e um dom espiritual teria sido comprovado por outros. Mas ali não havia desenvolvimento: havia o caos. Alguns daqueles ensinos não se acomodavam à ortodoxia e, assim, foram considerados obra do diabo. Alguns dos sensi¬tivos condenavam os outros como heréticos. Levantava-se voz con¬tra voz. O pior de tudo é que alguns dos “oradores” se convenceram de que seus discursos eram diabólicos. Parece que sua razão principal é que os discursos não se acomodavam às suas próprias convicções espirituais, o que nos poderia parecer antes uma indicação de que eram angélicos. Também entravam pelo escorregadio caminho da profecia e ficavam envergonhados quan¬do suas profecias não se realizavam.
Alguns fatos constatados através desses sensitivos e que cho¬cavam a sua sensibilidade religiosa poderiam ter sido melhor com¬preendidos por uma geração mais esclarecida. Assim, admite-se que tenha sido um dos estudiosos da Biblia que tenha dito, em relação à Sociedade Bíblica, “que ela era um curso em toda a Ter¬ra, cobrindo o Espírito de Deus, pela letra da palavra de Deus”. Certo ou errado, parece que o enunciado independe de quem o anuncia e se acha de pleno acordo com os ensinos espirituais que atualmente recebemos. Enquanto a letra for considerada sagrada, tudo pode ser provado por aquele livro, inclusive o puro materia¬lismo.
Um dos principais iniciados era um tal Robert Baxter12 — e que não deve ser confundido com o Baxter, que, uns trinta anos mais tarde, estava ligado a notáveis profecias. Parece que esse Robert Baxter era um cidadão sólido, zeloso e prosaico, que via as Escrituras mais do ponto de vista de um documento legal, com um valor exato para cada frase — especialmente para aquelas frases que serviam ao seu próprio esquema hereditário da religião. Era um homem honesto, com uma consciência in¬quieta, que o preocupava continuamente com os menores de¬talhes, enquanto o deixava imperturbável em relação à larga plataforma, sobre a qual eram construídas as suas opiniões. Esse homem era fortemente afetado pelo influxo do Espírito ou, para usar as próprias palavras, “a sua boca era aberta pela força”. De acordo com ele, o dia 14 de janeiro de 1832 foi o começo daqueles rústicos 1260 dias que deveriam preceder a Segunda Vinda e o fim do mundo. Tal profecia deveria ter sido particularmente simpática a Irving, com os seus sonhos milená¬rios. Mas muito antes que aqueles dias se tivessem comple¬tado, Irving estava em seu jazigo e Baxter tinha repudiado aque¬las vozes que, ao menos naquele caso, o haviam enganado.
Baxter havia escrito um folheto com o pomposo título de “A Narrativa de Fatos Característicos de Manifestações Supranaturais, em Membros da Congregação de Irving e outras pessoas, na inglaterra e na Escócia, e inicialmente no Próprio Autor”. A verdade espiritual não poderia vir através de uma tal mente, do mesmo modo não o poderia a luz branca através de um prisma; e, ainda nesse caso, há que admitir a ocorrência de muitas coisas aparentemente sobrenaturais, de mistura com muitas duvidosas e algumas absolutamente falsas. O obje¬tivo do folheto é principalmente abjurar os seus maus guias invisíveis, de modo a poder voltar são e salvo ao seio da Igre¬ja Escocesa. Observe-se, entretanto, que um outro membro da congregação de Irving escreveu um panfleto de resposta com um título enorme, mostrando que Baxter estava certo enquanto inspirado pelo Espírito, e satânico nas suas errôneas con¬clusões. Esse folheto é interessante por conter cartas de várias pessoas que possuiam o dom das línguas, mostrando que eram gente de cultura e incapazes de uma mistificação consciente.
Que dirá de tudo isso um imparcial estudioso do psiquis¬mo, familiarizado com os dois modernos aspectos? Pessoalmente parece ao autor que tenha sido um verdadeiro influxo psíquico, mascarado por uma acanhada teologia sectarista da descrição literal, pelo que foram censurados os Fariseus. Se lhe é permitido aventurar uma opinião, esta é que o perfeito recipiente do ensino espírita é o homem culto, que abriu ca¬minho através de todos os credos ortodoxos e cuja mente receptiva e ardente é uma superfície limpa e pronta para registrar uma nova impressão exatamente como a recebe. Torna-se, assim, um verdadeiro filho e discípulo dos ensinos do outro mundo e todos os outros tipos de espíritas parecem acomo¬dados. Isto não altera o fato de que a nobreza pessoal do caráter pode fazer do iniciado honesto um tipo muitíssimo mais elevado do que o simples espírita; mas isto só se aplica a atual filosofia. O campo do Espiritismo é imensamente vasto e nele cada variedade de cristão, como de maometano, de hindu ou de parsi pode viver em fraternidade. Mas a simples admis¬são do retorno do Espírito e da comunicação não é suficiente. Muitos selvagens o admitem. Necessitamos também, um código de moral. E se consideramos o Cristo como um mestre bene¬volente ou como um divino embaixador, Seu ensino ético atual, de uma forma ou de outra, mesmo quando não conju¬gado com o seu nome, é uma coisa essencial ao soerguimento da humanidade. Mas deve ser sempre controlado pela razão e aplicado conforme o espírito e não conforme a letra.
Isto, porém, é uma digressão. Nas vozes de 1831 há sinais de verdadeira força psíquica.
É uma reconhecida lei espiritual que toda manifestação psíquica sofre uma distorção quando apreciada através de um médium de estreito secta¬rismo religioso. É também uma lei que as pessoas presun¬çosas e infatuadas atraem Espíritos malévolos e são alvo do espírito do mundo, dos quais se tornam joguetes através de grandes nomes e de profecias que as tornam ridículas. Tais foram os guias que desceram sobre o rebanho de Mr. Irving e produziram diversos efeitos, bons e maus, conforme o ins¬trumento empregado.
A unidade da Igreja, que tinha sido sacudida pela prévia censura do presbitério, não resistiu a esse novo golpe. Houve uma grande cisão e o prédio foi reclamado pelos administradores. Irvíng e os partidários que lhe ficaram fiéis andaram à procura de um novo local, e vieram encontrá-lo na sala que usava Robert Owen, o socialista, filantropo e livre-pensador, destinado, vinte anos mais tarde, a ser um dos pioneiros conversos do Espiritismo. Aí, no Gray’s Inn Road, Irving reuniu os fiéis. Não se pode negar que a Igreja, tal qual a organizou, com o seu anjo, os seus presbíteros, seus diá¬conos, suas línguas e suas profecias, era a melhor reconstituição da primitiva Igreja Cristã jamais realizada. Se Pedro ou Paulo se reencarnassem em Londres teriam ficado confusos e, até, horrorizados ante a Igreja de São Paulo ou a Abadia de Westminster; mas certamente teriam sentido uma atmos¬fera perfeitamente familiar na reunião presidida por Irving. Um sábio reconhece que há inúmeras direções para nos apro¬ximarmos de Deus. A mente dos homens e o espírito dos tempos variam de reações à grande causa central e apenas podemos insistir numa caridade muito ampla para consigo mesmo e para com os outros. Parece que era isso o que faltava a Irving.
Era sempre pelo modelo daquilo que era uma seita entre seitas que media o universo. Havia ocasiões em que ele era vagamente consciente disso; e é possível que aquelas lutas com Apollyon, de que ele se lamenta, com o Bu¬nyan e os velhos Puritanos13 que costumavam lamentar-se, tenham sido uma estranha explicação. Apollyon era, realmente, o Espí¬rito de Verdade e a luta interior não era entre a Fé e o Pecado, mas realmente entre a obscuridade do dogma herdado e a luz inerente à razão instintiva, dom de Deus erguendo-se para sempre em revolta contra os absurdos do homem.
Mas Irving viveu muito intensamente e as sucessivas crises por que passou o esgotaram.
Essas discussões com teólogos tei¬mosos e com recalcitrantes membros de seu rebanho se nos afiguram coisas triviais, quando vistas a distância; mas para ele, com aquela alma devotada, ardente e tempestuosa, eram vitais e terríveis. Para uma inteligência emancipada, uma seita ou outra é indiferente; mas para Irving, quer pela herança, quer pela educação, a Igreja Escocesa era a Arca de Deus e ele o seu fiel e zeloso filho que, conduzido pela sua própria cons¬ciência, tinha avançado e encontrado as largas portas que con¬duzem à Salvação fechadas às suas costas. Era um galho cortado da árvore e ia secando. É uma comparação e mais que isto, porque se tornou, físicamente, uma verdade. Aquele gigante da meia-idade murchou e encolheu. Seu arcabouço ver¬gou. As faces tornaram-se cavadas e pálidas. Os olhos brilha¬vam de febre fatal que o consumia. E assim, trabalhando até o fim, tendo nos lábios as palavras “Se eu morrer, morrerei com o Senhor”, a sua alma passou para aquela luz mais clara e mais dourada, na qual o cérebro encontra repouso e o Es¬pírito ansioso entra numa paz e numa segurança jamais encon¬tradas na vida.
Além desse incidente isolado da Igreja de Irving, houve uma outra manifestação psíquica naqueles dias, que levou mais diretamente à revelação de Hydesville. Foi o desabrochar de fenômenos espíritas nas comunidades dos “shakers”15, nos Estados Unidos, e que despertou menos atenção do que merecia. Parece que de um lado essa boa gente se ligava aos shakers, e do outro aos refugiados das Cevennes15, vindos para a Ingla¬terra para se subtrairem à perseguição de Luis XIV.
Mesmo na Inglaterra as suas vidas inofensivas não os livraram da perseguição dos fanáticos e eles se viram forçados a emigrar para os Estados Unidos, durante a Guerra da Inde¬pendência. Aí fundaram estabelecimentos em vários lugares, vivendo vida simples e limpa, na comunidade de princípios, sóbria e castamente, na sua palavra de ordem. Não é de admi¬rar que a nuvem psíquica das forças do além pouco a pouco descesse sobre a Terra e encontrasse repercussão naquelas comunidades altruísticas. Em 1837 existiam sessenta desses gru¬pos e todos eles respondiam de várias maneiras à nova força. Então guardavam muito cuidadosamente a experiência para si mesmos, porque, como os seus maiores posteríormente explora¬vam, certamente teriam sido levados para os hospícios se ti¬vessem revelado o que então ocorria. Entretanto, logo depois apareceram dois livros contando as suas experiências: “Santa Sabedoria” e “O papel sagrado”.
Parece que os fenômenos se iniciaram com os costumeiros sinais de avisos, seguidos pela obsessão, de quando em vez, de quase toda a comunidade. Cada um, homem ou mulher, demonstrava estar preparado para a manifestação dos Espíritos. Entretanto os invasores só chegavam depois de pedir permissão e nos intervalos não interferiam no trabalho da comunidade. Os principais visitantes eram Espíritos de Peles Vermelhas, que vinham em grupos, como uma tribo. “Um ou dois presbíteros deveriam estar na sala de baixo, aí batiam à porta e os índios pediam licença para entrar. Dada a licença, toda a tribo de Espíritos de índios invadia a casa e em poucos minutos por toda a parte ouvia-se o seu “Whoop! Whoop!” Os gritos de “whoop”, aliás, emanavam dos órgãos vocais dos próprios “shakers”. Mas, quando sob o controle dos índios, conver¬savam na língua destes, dançavam as suas danças e em tudo mostravam que estavam realmente tomados por Espíritos de Peles Vermelhas.
Perguntarão por que deveriam esses aborígines norte-ameri¬canos representar um papel tão saliente não só na inícíação, mas na continuidade do movimento? Há poucos médiuns de efeitos físicos neste país, como nos Estados Unidos, que não te¬nham como guia um Pele Vermelha e cuja fotografia não é raro ser obtida por meios psíquicos, ainda com os seus vestidos e seus peitorais de couro cru. É um dos muitos mistérios que ainda devemos solucionar. Com certeza apenas podemos dizer, basea¬dos em nossa própria experiência, que esses Espíritos tem grandes poderes para a produção de fenômenos físicos, mas nunca demonstram um ensino mais alto do que nos chega de Espíritos europeus ou orientais.
Entretanto os fenômenos físicos ainda são de grande importância, porque chamam a atenção dos cépticos e assim, o papel reservado aos índios é de importância vital. Pa¬rece que os homens da rude vida campestre, na vida espiri¬tual estão especialmente destinados às grosseiras manifestações da atividade do Espírito. E tem sido constantemente afirmado, conquanto seja difícil prová-lo, que o primeiro organizador de tais manifestações foi um aventureiro, que em vida se chamava Henry Morgan e que morreu como governador de Jamaica, um posto para o qual havia sido nomeado ao tempo de Carlos II. Deve admitir-se que essas afirmações não provadas nenhum valor possuem no atual estado dos nossos conhecimentos, mas deveriam ser registradas, desde que informações posteriores podem uma dia lançar sobre elas uma nova luz. John King, que é o nome do Espírito do suposto Henry Morgan, é um ser muito real: poucos espíritas experimentados há que não tenham visto a sua cara barbuda e ouvido a sua voz máscula. Quanto aos índios que são seus companheiros ou subordinados, apenas é possível aventurar uma conjectura: são as crianças da Natureza talvez mais próximas dos primitivos segredos do que outras raças mais complexas. Pode acontecer que o seu trabalho especial seja da natureza de uma expiação – explicação que o autor ouviu de seus próprios lábios.
Parece que essas explicações constituem uma digressão da atual experiência dos “shakers”, mas as dificuldades que se erguem na mente do investigador se devem, em grande parte, à quantidade de fatos novos, sem ordem nem explicação, que é preciso contornar. Sua inteligência não possui escaninhos suficientes aos quais os possa adaptar. Entretanto, nestas páginas o autor procura, na medida do possível, fornecer, de sua própria experiência ou da daqueles em quem pode confiar, aquelas luzes que podem tornar o assunto mais inteligível e, pelo menos, dar uma idéia daquelas leis que os regem e que estabelecem a ligação entre os Espíritos e nós mesmos. Acima de tudo, o investigador deve para sempre abandonar a idéia de que os desencarnados sejam, necessariamente, entidades sábias e poderosas. Eles tem a sua individualidade e as suas limitações, assim como as temos, e essas limitações se tornam mais destacadas quando se manifestam através de uma substância tão alheia quanto a matéria.
Os “shakers” contavam com um homem de notável inteli¬gência, chamado F. W. Evans16, que fez um claro e interessante relato de todo esse assunto e que os curiosos podem encontrar no New York Daily Graphic, de 24 de Novembro de 1874 e foi largamente citado na obra do Coronel Olcott “Gente do Outro Mundo.”
Mr. Evans e seus companheiros, depois da primeira per¬turbação física e mental, causada pela irrupção daqueles Espíritos, puseram-se a estudar o que aquilo realmente significava. Che¬garam à conclusão de que a matéria poderia ser dividida em três fases. A primeira consistia em provar ao observador que a coisa era verdadeira. A segunda era a fase de instrução, na qual mesmo o mais humilde Espírito pode trazer informações de sua própria experiência das condições post-mortem. A terceira fase, dita fase missionária, era a de aplicação prática. Os “shakers” chegaram a conclusão inesperada de que os índios não tinham vindo ensinar, mas aprender. Assim, catequizaram-nos como foi possível, exatamente como o teriam feito em vida. Uma experiên¬cia semelhante ocorreu desde então em muitíssimos centros espíritas, onde humildes espíritos muito primitivos vieram aprender aquilo que deveriam ter aprendido neste mundo, se tivesse havido professores. Certamente perguntarão por que Espíritos mais elevados do além não cuidam desse ensino? A resposta dada ao autor, numa notável ocasião, foi a seguinte: “Essa gente está muito mais próxima de voces do que de nós. Voces podem alcançá-los onde nós não podemos”.
Daí se conclui claramente que os bons “shakers” jamais estiveram em contacto com os guias mais elevados — talvez não necessitassem de ser guiados — e que os seus visitantes eram de um plano inferior. Durante sete anos as visitas continuaram. Quando os Espíritos os deixaram, disseram-lhes que se iam, mas que voltariam; e que, quando voltassem, inva¬diriam o mundo e tanto entrariam nas choupanas quanto nos palácios.
Foi justamente depois de quatro anos que começaram as batidas de Rochester17. E quando se iniciaram, Elder Evans e outro “shaker” foram a Rochester e visitaram as irmãs Fox. Sua chegada foi saudada com grande entusiasmo pelas forças invisíveis, que proclamaram que aquilo era realmente o tra¬balho que tinha sido predito.
Digna de referência é uma observação de Elder Evans. Quando lhe perguntaram: “Não pensa que a sua experiência é a mesma dos monges e freiras da Idade Média?” sua resposta não foi: “As nossas eram angélicas, as outras, diabólicas”, como teria sido, se se invertessem os interlocutores. Ele respondeu com muita candura e clareza: “Certamente. Isto é a sua própria explicação através dos tempos. As visões de Santa Teresa são visões espíritas, do mesmo modo que as que frequentemente tem tido os membros de nossa sociedade”. Quando depois lhe perguntaram se a magia e a necromancia não pertenciam à mes¬ma categoria, respondeu: “Sim. Isto é Espiritismo empregado para fins egoísticos”. É claro que havia homens, que viveram há cerca de um século, capazes de instruir os nossos sábios de hoje.
Aquela notável senhora que foi Mrs. Hardinge Britten18 registrou em seu “Moderno Espiritualismo Americano” como se pôs em inteiro contacto com a comunidade dos “shakers” e como eles lhe mostraram relatos, tomados por ocasião das visi¬tas dos Espíritos. Neles se afirma que a nova era deveria ser inaugurada por uma extraordinária descoberta, tanto de valor material quanto espiritual. Esta é uma notável profecia como é um assunto de história que os campos auríferos da Califórnia foram descobertos pouco tempo depois daquela erupção psíquica. Um partidário de Swedenborg, com a sua doutrina das corre¬lações, possivelmente sustentaria que estes dois fatos se complementam.
O episódio da manifestação dos “shakers” é um elo muito distinto entre o trabalho de pioneiro de Swedenborg e o período de Davis e das Irmãs Fox. Estudaremos agora a carreira do primeiro, que está intimamente associada com o surgimento e o progresso do moderno movimento psíquico.


Texto extraído do Livro “História do Espiritismo” de Sir Arthur Conan Doyle, Editora Pensamento, 2001.
Autorização solicitada por email à e-ditora. Pendente de confirmação.

1) Thomas Carlyle (Ecclefechan,04/12/1795 — Londres, 05/02/1881) foi um escritor, historiador e ensaísta escocês. (Wikipédia)
2) Jorge Gordon Byron, conhecido como Lord Byron, foi um importante poeta inglês do século XIX. (Londres 23/01/1788. – 1824) http://englishhistory.net/byron.html
3) Scottish Reform Act 1832, lei que reformou o sistema eleitoral Escocês.
4) John Graham of Claverhouse. O autor refere-se a este militar escocês do século 17 que foi o primeiro visconde de Dundee. Fez história combatendo na França e na Holanda.
5) Jane Welsh Carlyle (14/07/1801- 21/04/1886). Esposa de Thomas Carlyle. Famosa por suas cartas. Uma das principais figuras femininas na literatura Vitoriana. http://www.malcolmingram.com/jcindex.htm
6) Thomas Chalmers (17/03/1780 – 31/05/1847), Matemático escocês e líder da Igreja Livre da Escócia.
7) O autor se refere às imagens que João, apóstolo, enxerga em suas visões na ilha de Patmos e, mais tarde, incorporadas à Bíblia: “Eu, João, irmão vosso e companheiro convosco na aflição, no reino, e na perseverança em Jesus, estava na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus. Eu fui arrebatado em espírito no dia do Senhor, e ouvi por detrás de mim uma grande voz, como de trombeta, que dizia: O que vês, escreve-o num livro, e envia-o às sete igrejas: a Éfeso, a Esmirna, a Pérgamo, a Tiatira, a Sardes, a Filadélfia e a Laodicéia”. (Apocalipse)
8) Profeta Daniel, Antigo Testamento (livro de Daniel)
9) Na Grã-Bretanha [no início do século XIX] um notável evento teve lugar em conexão com nomes como Hans Wood, Lewis Way, Archibald Mason, James Hatley Frere, Edward Irving, Joseph Wolff, Henry Drummond, Robert Chalmers, James Begg, Matthew Habershon, McNeil, Pym, Hutchinson, Bayford, Frye, Noel, Vaughan e Cuninghame. Mais de uma conta de religiosos, homens eruditos – a maioria ministros de diversas igrejas - começaram a estudar e escrever sobre as profecias de Daniel e do Apocalipse. Sentindo a necessidade de trocar idéias sobre estes temas de interesse comum, e de buscar aconselhamento para seus problemas comuns, uma conferência profética foi convocada para reunir-se em 1826, na casa de Henry Drummond, em Albury Park. http://minutoprofetico.blogspot.com/2009/03/conferencias-profeticas-de-albury-park.html
10) Texto bíblico: (At 2,1-13)
"Quando chegou o dia de pentecostes, eles se achavam reunidos todos juntos. De repente, veio do céu um ruído como o de um violento vendaval que encheu toda a casa onde eles estavam; então lhes apareceu algo como línguas de fogo, que se repartiram, e pousou uma sobre cada um deles. Todos ficaram repletos do Espírito Santo, e se puseram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia exprimirem-se.
Ora, em Jerusalém, residiam judeus piedosos, vindos de todas as nações que existem sob o céu. Ao rumor que se propagava, a multidão se reuniu e ficou toda confusa, pois cada um os ouvia falar em sua própria língua. Perplexos e maravilhados, eles diziam: 'Todos estes que falam não são galileus? Como é que cada um de nós os ouve em sua língua materna? (...) nós os ouvimos anunciar em nossas línguas as maravilhas de Deus!' Eles estavam todos atônitos, e, em sua perplexidade, diziam uns ao outros: 'Que quer dizer isto?' Outros, porém, desandavam a rir dizendo: 'Eles estão cheios de vinho doce!' "
11) Campbell e Mac Donald, clãs (famílias) escoceses tradicionais.
12) Baxter, Robert — "Narrative of Facts, Characterizing the Supernatural Manifestations in Members of Mr. Irving's Congregation, and Other Individuals, In England and Scotland, and Formerly in the Writer Himself" — Doncaster, England, 1833, p. 126, as quoted by MacPherson (Op. Cit.), p. 89.
http://reformed-theology.org/html/books/rapture/chapter6.htm
13) “Apollyon, de que ele se lamenta, com o Bu¬nyan e os velhos Puritanos”13
Apollyon, “deus da destruição”, consta das visões de João sobre o Apocalipse.
John Bunyan (28 de Novembro de 1628 – 31 de Agosto de 1688, Londres), escritor cristão e um pregador nascido em Harrowden, Elstow, Inglaterra, foi o autor de The Pilgrim's Progress (O Peregrino), provavelmente a alegoria cristã mais conhecida em todos os tempos. Com John Milton, disseminou o puritanismo pela Europa.
14) Shakers, denominação religiosa protestante para um grupo que baseia sua fé na volta do Cristo. (United Society of Believers in Christ’s Second Appearing).
15) Cevennes, Barre-des-Cévennes é uma comuna francesa na região administrativa de Languedoc-Roussillon, no departamento de Lozère. Durante o reinado de Luís XIV, muitos protestantes perseguidos por questões religiosas se refugiaram nesta região. Posteriormente, como não cessassem as perseguições, emigraram para os EEUU, onde fudaram dezenas de povoados.
16) F. W. Evans, autor dos livros “Santa Sabedoria e Papel Sagrado” referidos na obra.
17) Rochester, região do estado de Nova Iorque onde está localizado o vilarejo de Haydesville.
18) Emma Hardige Britten, Foi denominada Apóstolo Paulo feminino do movimento espírita. Ela era uma mocinha inglesa que havia ido para Nova Iorque com uma empresa de teatro e tinha permanecido nos Estados Unidos, onde viveu em companhia de sua mãe. De educação protestante, repelia com energia qualquer aproximação com os espíritas, entretanto, no ano de 1856, foi novamente posta em contato com o Espiritismo, quando teve provas irrefutáveis das verdades por ele apregoadas. Logo descobriu que era, também ela, poderosa médium, podendo-se afirmar que um dos casos mais bem documentados, e que alcançou notável sensacionalismo, foi a sua informação de que o navio "Pacific" tinha naufragado no Atlântico, perecendo todos os passageiros. Após essa revelação ela foi perseguida pela companhia proprietária do navio, por haver repetido o que lhe havia dito o Espírito de uma das vítimas da catástrofe. Verificou-se posteriormente que a sua informação mediúnica era verdadeira, pois o navio havia realmente naufragado. Em 1866 voltou ela para a Inglaterra, produzindo duas grandes obras: "Moderno Espiritualismo Americano" e "Milagres do Século Dezenove". Quando na Austrália, ela escreveu: "Fé, Fatos e Fraudes da História Religiosa", livro que ainda hoje exerce relativa influência. Ernesto Bozzano, um dos maiores escritores espíritas, profundo investigador, homem de ciência, polemista emérito, cuja obra honra e engrandece a Doutrina Espírita, em notável depoimento escrito para a revista "La Luz Del Porvenir", relatou que o livro "Moderno Espiritualismo Americano", lhe foi muito proveitoso no período de sua conversão ao Espiritismo. A obra de Emma Harding Britten, nos primórdios do Espiritismo, foi das mais relevantes, devendo-se a ela grande número de conversões, inclusive de pessoas de grande projeção na época. A sua desencarnação aconteceu no ano de 1889.

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